Um Ano... Amanhã!
O Novo Homem
O homem será feito em laboratório. Será tão perfeito como no antigório. Rirá como gente, beberá cerveja deliciadamente. Caçará narceja e bicho do mato. Jogará no bicho, tirará retrato com o maior capricho. Usará bermuda e gola roulée. Queimará arruda indo ao canjerê, e do não-objeto fará escultura. Será neoconcreto se houver censura.
Ganhará dinheiro e muitos diplomas, fino cavalheiro em noventa idiomas. Chegará a Marte em seu cavalinho de ir a toda parte mesmo sem caminho. O homem será feito em laboratório, muito mais perfeito do que no antigório. Dispensa-se amor, ternura ou desejo.Seja como flor (até num bocejo) salta da retorta um senhor garoto. Vai abrindo a porta com riso maroto: "Nove meses, eu? Nem nove minutos".
Quem já conheceu melhores produtos? A dor não preside sua gestação. Seu nascer e lide o sonho e a aflição. Nascerá bonito? Corpo bem talhado? Claro: não é mito, é planificado. Nele, tudo exato, medido, bem-posto: o justo formato, o standard do rosto. Duzentos modelos, todos atraentes. (Escolher, ao vê-los, nossos descendentes.) Quer um sábio? Peça. Ministro? Encomende. Uma ficha impressa a todos atende. Perdão: acabou-se a época dos pais. Quem comia doce já não come mais. Não chame de filho este ser diverso que pisa o ladrilho de outro universo. Sua independência é total: sem marca de família, vence a lei do patriarca. Liberto da herança de sangue ou de afeto desconhece a aliança de avô com seu neto. Pai: macromolécula; mãe: tubo de ensaio e, per omnia secula, livre, papagaio, sem memória e sexo, feliz, por que não? Pois rompeu o nexo da velha Criação, eis que o homem feito em laboratório sem qualquer defeito como no antigório, acabou com o Homem. Bem feito.
(Carlos Drummond de Andrade)