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"(...) Fiquei pensando quem iria ler aquilo tudo. Mas, por outro lado, quem escreve não fica pensando nisso; escreve porque quer escrever. Depois, quem quiser que o leia - espera o escritor, e esperamos nós (...)". * Livro: Maria Madalena, A Mulher que Amou Jesus

9 de out. de 2008

No fundo, talvez sejamos todos “Cegos”

A sensação de às vezes ficar “cego”, mesmo enxergando, ficou evidente quando os créditos do filme começaram a subir na sala de cinema. Ainda meio boquiaberto, tentava organizar os pensamentos e entender quando e como me deixei “cegar” tantas vezes ao longo dos anos.

As minhas "cegueiras” já foram e voltaram várias vezes, antes e depois da leitura do livro, em 2001. Recupero a visão assim que algo “aperta” o calcanhar e me faz lutar contra os fantasmas, que me dizem que a vida está aí, não pronta, mas a se moldar conforme as escolhas.

Estas impressões ficaram mais latentes depois de ver uma das mais esperadas adaptações de um livro para o cinema: “Ensaio sobre a Cegueira”. Um dos melhores livros que eu já li, transformou-se em um dos imperdíveis filmes para se ver em 2008. O longa lançado no último mês de setembro e dirigido pelo cineasta brasileiro Fernando Meirelles, é baseado no livro homônimo escrito pelo consagrado e premiado José Saramago.

Com um elenco “hollywoodiano”, a história se passa em uma metrópole não identificada, abalada por uma epidemia de cegueira branca. As vítimas desta repentina epidemia são levadas e obrigadas a permanecerem em um manicômio adaptado para uma espécie de quarentena. Lá, a superlotação, a escassez de comida e a falta de higiene transformam as vidas de homens e mulheres que usam de comportamentos primitivos e perversos para sobreviver. Mas dentre os cegos, existe a mulher do médico oftalmologista que fingiu ser cega para acompanhar o marido. Além dos dramas inimagináveis dos personagens, existe o de uma mulher que gostaria de ficar cega, para não ver o que os olhos enxergam.

Meirelles deixa sua marca no filme, a câmera, a luz, a forma como a história foi montada são bem características. Durante uma exibição, o escritor português, que resistiu em autorizar a adaptação para o cinema, assistiu e afirmou que tinha ficado emocionado com o resultado final. Tão emocionado quanto no dia em que terminou a história do livro, no ano de 1995.

Autodidata, José Saramago começou a escrever logo cedo e aos 25 anos lançou o seu primeiro livro. Apesar de muitas publicações de sucesso ao longo da vida, a crítica encarou um dos seus títulos mais famosos, “Evangelho Segundo Jesus Cristo”, como um romance controvérsio. Mas foi somente em meados da década de 1990, que Saramago marcou uma nova fase e talvez a mais conhecida atualmente, que é quando ele publica textos sem identificar tempo, lugares e personagens. É nesta nova fase que surge “Ensaio sobre a Cegueira”, livro que li sob a indicação da minha Tia Sonia, amante da literatura e professora de português. E que anos mais tarde me presenteou com o “Conto da Ilha Desaparecida”, também da sua autoria.

O que nos encanta na narrativa de José Saramago é o ritmo que ele emprega à leitura, mesmo quase não existindo parágrafos ou capítulos em seus livros. A fluidez e a curiosidade em forma sedenta se amplia a cada nova linha, a cada nova página. Um encantamento!

Só depois de ler um livro de Saramago entendemos por que ele é considerado um mestre das letras. E também não é difícil entender o por que ele foi premiado em 1998 com o Nobel de Literatura, primeiro concedido a um escritor de língua portuguesa.

Particularmente em “Ensaio sobre a Cegueira”, a fábula aponta sobre os dias de hoje, de como nos relacionamos, corremos atrás de mil sonhos, tentamos satisfazer todos os nossos desejos, queremos uma vida confortável, o individualismo nos veste. É fácil "ver" quando o universo conspira a favor. Mas será que estamos preparados para viver as mais puras das realidades quando elas se fizerem necessárias? Talvez a preferência seja em fechar os olhos e recobrar a visão depois, em um dia sem muito movimento, daqueles que se confunde preguiça com conforto.